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Manifestantes protestam contra o
massacre no Jacarezinho, no Rio de Janeiro, em frente à Polícia Civil, na
última sexta, 7 de maio.ANTONIO LACERDA / EFE
O ex-investigador e cientista político, que estuda há
mais de duas décadas as polícias e a segurança pública no Brasil, diz que
faltou inteligência à Polícia Civil. Ele defende investigação independente
sobre o massacre.
O ex-investigador e
cientista político Guaracy Mingardi define a operação na favela do Jacarezinho,
na zona norte do Rio de Janeiro ―que deixou 28 mortos na última quinta-feira,
entre eles um policial que atuava na ação―, como um “morticínio”, que não
deveria ter acontecido caso a Polícia Civil agisse pautada pela investigação e
inteligência, e não pela lógica do confronto. Doutor em Ciência Política pela
Universidade de São Paulo (USP) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública, o ex-policial estuda organizações criminosas há mais de duas décadas e
destaca a militarização das polícias como um problema ao funcionamento da
instituição. “O tráfico se armou, a polícia foi se armando cada vez mais e a
população foi ficando cada vez mais aprisionada no meio deles.”
A operação Exceptis
tinha como objetivo cumprir 21 mandados de prisão contra investigados por
aliciar crianças e adolescentes para o tráfico de drogas no Jacarezinho, região
cujo narcotráfico é dominado pelo Comando Vermelho, e onde vivem cerca de
40.000 habitantes. Dos 21 investigados, três foram mortos e outros três presos.
Foram apreendidos seis fuzis, 16 pistolas, uma submetralhadora, 12 granadas e
uma escopeta calibre 12. Mas ao menos 13 pessoas mortas não eram investigados
na operação, que é considerada a mais letal da história do Rio e a segunda
maior chacina registrada no Estado. Há vários relatos de violações de direitos
humanos feitas por moradores do Jacarezinho. Mas a Polícia Civil nega ter
descumprido regras, critica o “ativismo judicial” dos detratores da ação e
insiste que todos os mortos eram criminosos, com exceção do agente.
O EL PAÍS entrevistou o
especialista em segurança pública neste sábado, por telefone. Na conversa,
Guaracy Mingardi ―que é autor do livro Tiras, Gansos e Trutas: cotidiano e
reforma na Polícia Civil―, apontou o que considera os principais erros
cometidos pela corporação.
Pergunta: Como avalia o
resultado da operação da última quinta na favela do Jacarezinho?
Resposta: Foi uma coisa
que não deveria ter acontecido. É o tipo de operação que não deve ocorrer,
porque virou uma guerra. Na verdade, o trabalho que deveria ser feito não era
esse. A Polícia Civil não está lá para fazer operação atirando; deve
investigar, ir atrás dos criminosos, cumprir os mandados de prisão, mas não
trocar inúmeros tiros em uma área urbanizada. Então foi uma coisa que começou
errada ―por ter sido uma operação desse tipo―, e continuou errada o tempo todo.
Inclusive, se não tivessem feito essa bobagem, e sim esperado para, aos poucos,
ir prendendo cada um deles não teria morrido um policial, nem ninguém.
P: Como podemos
qualificar esta ação?
R: O que aconteceu foi
uma chacina, um morticínio, uma tragédia. Estão falando que todos eram
criminosos, mas eu não vi. E mesmo que fossem criminosos, a nossa legislação
não tem pena de morte então não era para eles serem mortos, e sim presos.
Quando acontece algo desse porte, não se pode dizer outra coisa a não ser que
foi uma chacina, uma tragédia, e a polícia fez tudo errado.
P: Chama a atenção o
fato de a operação mais letal da história do Rio de Janeiro ter sido feita pela
Polícia Civil, cujo papel é investigar? O que levou a uma ação tão letal pela
instituição?
R: A Polícia Civil tem o
dever de cumprir os mandados de prisão. Eram 21 investigados por suspeita de
aliciar menores para o tráfico de drogas, motivo da entrada policial. Só que o
problema é a forma. Como a Polícia Civil se militarizou demais ―e isso em todo
o Brasil―está agindo através de operação, quis pegar todo mundo junto, e não
pega. Vários deles não deveriam nem estar lá, mas para você saber onde eles
estão precisa de investigação, um trabalho de inteligência muito bom. Quando se
faz uma operação dessas botando tanta gente e pega menos de um terço do que era
procurado, tem alguma coisa errada. A inteligência não foi tão boa, a
informação que chegou não foi boa. Para localizar pessoas, por exemplo, quando
teve uma série de guerras na Rocinha, depois de um certo tempo, um dos
principais criminosos foi preso pela Polícia Civil sem trocar um tiro fora da
Rocinha, porque ele estava se escondendo e através de investigações e prenderam
sem dar um tiro, é essa a ideia.
P: A Polícia Civil
afirma que a única execução foi a do policial André Frias, e que todas as
outras mortes foram para neutralizar os traficantes. Mas soube-se depois que
pelo menos 13 mortos nem sequer eram investigados naquela ação. Como vê isso?
R. Quando você entra
atirando não escolhe alvo. Acaba matando quem está reagindo, quem não tem nada a ver com nada. Não se pode fazer uma
guerra na área urbana, a polícia não existe para isso. Na guerra, você entende:
morre inocente e quem tem a ver, mas é uma guerra. Agora, o que aconteceu, não.
Era para ser feito a prisão de alguns criminosos, afinal, não conseguiram pegar
todos eles. Eles fizeram tudo isso para pegar pouca gente e mataram muitos, ou
seja, a ideia está toda errada. Eu sempre falo isso: quem faz operação é
médico, polícia não tem que fazer operação.
P: Em qual contexto
acontece esta militarização das polícia e desde quando?
R: As do Rio começaram a
se militarizar antes, por conta do Comando Vermelho. Na época [final dos anos
1970] e depois, por conta de outras organizações criminosas (que eu não chamo
de facções), as polícias começaram a se armar muito. Primeiro a PM e depois a
Civil partiram para esse tipo de guerra. E por trás disso tudo está a ideia de
guerra contra às drogas, então você deixa a droga mais cara e na mão dos
criminosos, dos mais violentos possíveis, e não adianta nada. Você faz uma
guerra prolongada e nem consegue diminuir a droga circulando? Alguma coisa está
errada nessa política. Como eu disse, não é exclusivo do Rio de Janeiro,
acontece quase que no país todo, mas não em todos os Estados, essa
militarização da repressão ao tráfico, mas as cacas maiores dos últimos tempos
aconteceram lá.
O tráfico se armou, a
polícia foi se armando cada vez mais e a população fica aprisionada no meio
deles.
P: É possível dizer que
há um antes e depois do Comando Vermelho no que diz respeito à atuação das
polícias?
R: No Rio você sempre
teve aquele problema de dificuldade da polícia em subir o morro, mesmo antes
das organizações criminosas, já se tinha as quadrilhas, era difícil de chegar,
bem complicado. Quando o Comando Vermelho começou a tomar o espaço, como no
Santa Marta e na Cidade de Deus, ficou cada vez mais difícil para a polícia
chegar. Depois que os criminosos começaram a usar fuzil, a polícia também
começou a usá-los e foi evoluindo nisso. Cito uma bobagem carioca de fuzil, nas
palavras de Wilson Witzel (governador do Rio que sofreu impeachment por
irregularidades na área da Saúde), que é o seguinte: o tiro de precisão do
helicóptero não existe, por causa da trepidação não dá para dar tiro de
precisão. Não adianta ter um atirador muito bom que você não consegue. Essa é a
maior estupidez de todas, ou seja, para resumir: o tráfico se armou, foi
ficando cada vez mais armado e pesado, a polícia foi se armando cada vez mais e
ficando pesada. São dois lados muito preparados para trocar tiros, e a
população fica aprisionada no meio deles: da polícia e dos criminosos. Se não
pegarmos pesado agora para impedir, vai continuar a acontecer.
P: O que distingue as
atuações do Comando Vermelho e do Primeiro Comando da Capital (PCC), as maiores
organizações criminosas do Brasil, e como isso influencia no trabalho da
polícia?
R: O contexto histórico
do Rio de Janeiro, do armamento, da polícia que foi se militarizando e tem a
questão do Comando Vermelho, que o pessoal é mais porra louca mesmo, muito
diferente do PCC, por exemplo. O pessoal do PCC matar policiais? Precisa de
autorização lá de cima no PCC. Então, na verdade, o Comando Vermelho é cheio de
porra louca que fazem o que quer. Só que a polícia não pode ser cheia de porra
louca, a polícia é uma organização profissional e tem que agir
profissionalmente, essa é a diferença. Os criminosos não estão nem aí em troca
de tiros e atiram no meio da multidão. Eles não estão nem ligando se isso
ocorrer, agora, a polícia, tem que se importar com isso. A polícia está ali
para proteger a população, essa é a função dela.
P: A Organização das
Nações Unidas pediu na sexta-feira que haja investigação independente para
elucidar a chacina. Quem deveria conduzir as investigações deste episódio?
R: Eu sou favorável às
investigações independentes assim como sou favorável à Ouvidoria de polícia com
poder de investigar. Ouvidoria de polícia não constituída por policiais, mas
sim por pessoas que são contratadas pelo Estado e que verificam elas antes de
passar adiante. Mas aí é um caso que vai além de uma simples Ouvidoria de
polícia: é o caso de que vai ter que ter gente com poder. Na verdade, você
teria que ter provavelmente uma ação do Ministério Público, porque o MP pode
convocar pessoas para depor. Então isso deveria partir do Ministério Público.
E, mesmo que não fosse o MP, deveria ser gente com o poder de convocar pessoas
para depor. Não adianta você só ouvir a polícia ou só a população. Você tem que
ouvir todo mundo.
P: O Ministério Público
(MPRJ) acompanhou na sexta-feira a perícia nos corpos das pessoas mortas no
Instituto Médico Legal (IML) e diz que está fazendo uma investigação
independente sobre o caso.
R: Pelo menos o MP deu
um passo. O problema é que muitas vezes temos o Ministério Público muito
ligado, muito amigo da polícia. Tem que ser parceiro de trabalho, mas não
amigáveis demais. Quando o policial comete um erro, tem que ser
responsabilizado. Não é um erro de um policial, eu não estou culpando todo
mundo da operação. É o que aconteceu. Quem foram os reais culpados? Quem mandou
aquilo? Quem organizou aquilo? É necessário verificar se não houve execução,
porque uma coisa é matar criminoso em um tiroteio e a outra coisa é executar.
Quem deixou aquilo acontecer?
FONTE: EL PAIS/BRASIL